Muitos homens, desde Platão, sucumbiram ao encanto de uma imaginada sociedade pura, limpa, livre de quaisquer imperfeições. A história regista os “progressos” conseguidos pelas inúmeras cruzadas purificadoras desses homens. A Igreja de Roma, responsável pela primeira grande investida global a favor da “purificação” humana, fê-la em nome de Deus. Pela “melhor” das razões, portanto. Hoje até ela se envergonha desses negros tempos de perseguição a várias categorias de gente então considerada “impura”: judeus, muçulmanos, pagãos, prostitutas ou homossexuais, genericamente tidos por hereges ou infiéis. A vertigem da pureza é perigosa, não escolhendo culturas nem religiões para se instalar. Em regra, todos os grandes ditadores quiseram, a seu modo, contribuir para a purificação da sociedade.
Muitas “congregações” humanas, independentemente da sua fé ou origem, têm ao longo da história, e nalguns casos, como acontece com a Maçonaria, perfeitamente a descoberto, imposto como regra de admissão a Ficha Limpa dos seus membros. Há muito que o fazem, e isso não tem em princípio qualquer mal. Porém, é algo que cria naqueles aspirantes ao poder cujo carácter é mais dado a vacilações, uma vontade secreta de controlar o aparelho da justiça, isto sempre que a razão maquiavélica, a fraqueza própria ou o mero oportunismo, os “obrigam” a contornar as leis ou a comportar-se indignamente. Esse controlo desvirtua os princípios do Estado de Direito democrático, como hoje todos reconhecem e afirmam, fazendo com que uma lei como essa, a da Ficha Limpa, uma vez aplicada nessas condições, apenas agrave a injustiça reinante, perpetuando no poder aqueles que são capazes de a manobrar. Oxalá não seja esse o caso do Brasil. Se fosse em Portugal, uma tal lei teria a meu ver um efeito imediato: o de excluir a possibilidade de se candidatarem a todos os cidadãos apanhados a conduzir com excesso de álcool no sangue, coisa que nalguns casos até poderia ser boa para a sociedade! A estes juntar-se-iam muitos outros que, mais por inépcia do que por manifesta malvadez, foram apanhados nas volúveis teias da justiça. É claro que todos os manhosos, corruptos ou malvados de carácter continuariam a poder candidatar-se numa democracia assim, uma vez dominada a aranha de muitos olhos. Ora, nesse caso, não se trata de defender a imperfeição humana, como alguns platónicos poderiam ripostar. Trata-se somente de não desejar que esta se agrave ainda mais.
0 Comentários