Uma plateia, praticamente esgotada, composta maioritariamente por técnicos ligados à área social, assistiu às intervenções das oradoras Alexandra Seabra (Psicóloga) e Carla Patrício (Assistente Social), ambas do Centro Hospitalar do Oeste – Unidade de Torres Vedras, grupo de Violência e Maus Tratos.
Sem tabus e com uma abordagem objetiva sobre o fenómeno, foram clarificados conceitos e revistos alguns dos procedimentos de intervenção em saúde do grupo de violência e maus tratos daquele hospital.
A necessidade de sensibilizar os profissionais de saúde para as questões da violência doméstica, a articulação entre os diferentes grupos de trabalho, a deteção, a sinalização de casos e o seu acompanhamento multidisciplinar foram alguns dos temas focados neste Workshop.
No dia 22 de outubro um Seminário na Biblioteca Municipal de Alcobaça analisou a problemática da violência nas relações na sua globalidade.” [Entre] Laços e Afetos – Perceções sobre Violência nas Relações” foi o tema central. O seminário reuniu 12 oradores de excelência que, ao longo de quatro painéis, discutiram problemáticas relacionadas com a Violência nas Relações: Retratos Institucionais; Percursos de Reinserção; Sexualidade, Deficiência e Envelhecimento e Prioridade às Crianças.
Destaque para a assinatura do protocolo de parceria entre a Associação Mulher Século XXI de Leiria (organização com vários anos de experiência no trabalho com Vítimas de Violência Doméstica) e o Município de Alcobaça, possibilitando, desta forma, a partilha de informação entre as duas instituições.
O seminário superou os seus objetivos de impulsionar a partilha de conhecimento científico entre as várias entidades intervenientes nos sistemas de prevenção e de intervenção no contexto da violência; e compreender a problemática social da violência nas relações, analisando as suas causas a partir de diferentes perspetivas e perceções.
Foram ainda apresentados resultados preliminares de um estudo sobre crenças de violência conjugal aplicando uma escala a praticamente todos os alunos do ensino secundário do Concelho de Alcobaça. O estudo encontra-se em fase de conclusão e oportunamente será divulgado às escolas e à comunidade.
Entrevista
João Mota psicólogo do Gabinete de Apoio a Vitimas de Violência Doméstica
RN – Que apoio dá este Gabinete à vítima, ou à pessoa que recorre a vós para pedir ajuda?
JM – O Gabinete de Apoio a Vitimas de Violência Doméstica, do Município de Alcobaça dispõe de apoio psicológico, jurídico e social, faz encaminhamento institucional em situações que o justifiquem e dinamiza grupos de ajuda mútua, no momento, só com vítimas de Violência Doméstica. Tudo isto é feito de forma gratuita e confidencial. Além das vítimas, existem também alguns agressores que nos procuram ou são encaminhados para o gabinete. Um dos objetivos do gabinete é também a realização de estudos junto da comunidade, que permitam aprofundam conhecimentos sobre o fenómeno da violência.
RN- Têm indicações sobre se a violência nas relações tem aumentado no concelho de Alcobaça?
JM – Os dados que temos são os do GAVVD. Existem outras entidades que podem fornecer essa informação, como a Policia ou a GNR, de qualquer forma, sentimos que as pessoas nos têm procurado cada vez mais. Nas ações que fazemos no terreno, nomeadamente nas escolas dos vários agrupamentos do concelho, sentimos que é necessário trabalhar estas questões. O bullying, os problemas de exposição a situações de violência conjugal em casa e as suas consequências em meio escolar, A violência no namoro que sabemos é um preditor de violência domestica no futuro, são questões preocupantes que vamos ouvindo na nossa experiência no CAJ – Centro de Atendimento a Jovens do Município de Alcobaça. Há muitos jovens que nos procuram e que relatam situações de violência por que estão a passar. Depois não podemos esquecer também outras formas de violência como a que é realizada sobre os idosos ou sobre as pessoas com algum tipo de deficiência.
RN- Quantos casos já chegaram às vossas mãos, só este ano?
JM – Em situação de violência doméstica este ano procuraram-nos cerca de 38 pessoas, a maioria mulheres. Muitas delas, – cerca de 30% – ainda sem qualquer queixa na psp ou gnr.
RN- A apresentação de queixa na polícia pode ser um fator de risco para a vítima?
JM – Importa dizer que a Violência Doméstica é um crime público, isto quer dizer que qualquer cidadão tem a obrigação de denunciar uma situação de VD. Se o entender pode também fazê-lo anonimamente na psp, gnr ou mesmo no ministério público. A vitima já se encontra numa situação de risco quando está no dia a dia com o agressor. Por outro lado, também sabemos, e os estudos dizem-no, que em determinadas situações a apresentação de queixa pode efetivamente aumentar esse risco. Por isso, é muito importante que a avaliação seja realizada de forma meticulosa e se o grau de perigosidade for elevado tomar as medidas necessárias de proteção efetiva à vítima, por exemplo, encaminha-la para uma instituição ou casa abrigo.
RN- São apenas as mulheres que são vítimas de violência doméstica ou também há casos de homens, idosos ou crianças?
JM – Os estudos referem que 85% das vítimas de violência doméstica são mulheres, existindo cerca de 15% de homens que também afirmam serem vitimas. Porém, acreditamos que esta percentagem é algo inferior à realidade. Há ainda muitos homens que por questões sociais, culturais ou outras têm dificuldade em dizer que sofrem de violência por parte de uma mulher. Existe ainda uma relutância masculina em admitir esta realidade e o preconceito social é o principal motivo. Por outro lado, como referi anteriormente, a violência doméstica não é apenas conjugal, quando um casal se agride psicologicamente ou fisicamente há quase sempre crianças a assistir na primeira fila e isto tem danos às vezes devastadores para estas crianças. Já referi também as questões com os idosos e com as pessoas com deficiência, o isolamento, os maus tratos é algo que infelizmente vai ocorrendo.
RN-Que conselho se pode dar a uma vítima de violência que ainda não tenha tido coragem de denunciar o seu caso, ache que – não está a ser vítima de violência, embora os fatos digam o contrário, ou simplesmente tenha medo de protagonizar uma mudança na sua vida e iniciar um novo percurso longe do ambiente em que tem vivido?
JM- Bom! À partida, ninguém conhece melhor o agressor que a vítima. Parece-me importante fazer uma boa avaliação do risco, da sua rede social. Depois, ajuda-la a encontrar algumas respostas. É um processo muitas vezes demorado, de alguma motivação, apoio, ajudar a vítima a entender que o que está a acontecer consigo é Violência Doméstica e que isso é crime e deve ser denunciado. Enquanto psicólogo, a minha perceção é que algumas vítimas surgem muito desestruturadas, com muita necessidade de contar a história. E muitas vezes nós temos a sensação durante as primeiras “n” sessões de que não estamos a fazer nada. Aliás, de que a vítima não nos deixa abrir a boca praticamente. Que está ali o tempo todo a debitar a sua história. A verdade é que ela precisa de estar ali, precisa de contar, precisa que a ouçamos. Precisa que validemos a sua história, embora isso às vezes seja algo frustrante. Porém, aquela vítima que aparece com um discurso muito desorganizado, que às vezes… (enfim, vou exagerar) mas quase roça o psicótico… ao longo das sessões vai-se organizando progressivamente e isso permite que ela se organize e avance para a denúncia e mesmo para a separação.
RN- Os vizinhos, amigos ou familiares devem denunciar casos de violência de que tenham conhecimento?
JM – A violência é um crime público, por isso, enquanto cidadãos sobre obrigados a denunciar estas situações.
RN-Quais são os principais fatores que desencadeiam episódios de violência doméstica? São comuns em todo o lado ou há especificidades, de acordo com o território?
JM – É preciso dizer que a criminalização da V.D. é algo relativamente recente. Há ainda fatores transgeracionais instalados. A agressão física e/ou psicológica muitas vezes não é entendida como um ato violento, é mesmo, em muitos casos algo desculpável. É aqui que precisamos intervir na desconstrução de crenças e de alguns comportamentos. Hoje, é ainda comum ouvirmos coisas como: “os maus-tratos só acontecem em meios sociais desfavorecidos”; “ele no fundo não é mau… quando bebe uns copitos fica transtornado”; “há mulheres que provocam os maridos, não admira que eles se descontrolem”; “a mulher sofre porque quer, se não já o tinha deixado”; “quanto mais me bates mais gosto de ti”; “a mulher maltratada nunca deve deixar o lar quando tem filhos… é preciso aguentar para bem deles” ou a clássica, “entre marido e mulher ninguém meta a colher”. Por outro lado, há a questão da ruralidade onde estas crenças têm terreno fértil e onde é mais difícil trabalhar. As questões do ciúme, do sentimento de posse, da não-aceitação da separação, os problemas financeiros, o pedido de divórcio, paixão não correspondida ou mesmo alguns fatores ligados à psicopatologia do agressor, são aspetos que podem servir de motivação para o crime.
RN- Há linhas que identificam uma pessoa que possa vir a tornar-se num potencial agressor?
JM-Já referi na resposta anterior. As questões do ciúme, do sentimento de posse, da não-aceitação da separação, os problemas financeiros, o pedido de divórcio, paixão não correspondida ou mesmo alguns fatores ligados à psicopatologia do agressor, são aspetos que podem servir de motivação para o crime e para episódios de Violência Doméstica.
RN- Fizeram vários worshops nas escolas do concelho. Como reagiu a população estudantil a este tema?
JM – De uma forma geral tem reagido bastante bem. De facto, no âmbito do PES – Plano Educação para a Saúde, as escolas dos vários agrupamentos do concelho solicitam o apoio do CAJ – Centro de Atendimento a Jovens, do Município de Alcobaça no sentido de efetuarmos oficinas sobre diversas temáticas. Algumas sobre Violência no Namoro/Relações, Gestão de Conflitos, bullying etc. Estas oficinas abordam o assunto sem tabus e as conversas fluem naturalmente sem grandes questões formais. Por vezes as emoções surgem a tona e isso é aproveitado para trabalhar outras questões. Importa referir que um recente estudo do gabinete sobre crenças de violência conjugal, junto dos jovens do ensino secundário dos Agrupamentos de Cister, ainda em fase de análise e que oportunamente daremos a conhecer às escolas e depois a comunidade, mostra que genericamente é um fenómeno desaprovado. Mesmo nos workshops/oficinas que realizamos surge genericamente, a ideia de que a violência é má – é um método errado de resolver os problemas. Muitas vezes acontece até um discurso moralista dos jovens em relação à violência – é sinal de uma personalidade frágil, é sinal de uma família desestruturada, é sinal de que a pessoa não tem competências para resolver os problemas de outra maneira. Mas depois, ao mesmo tempo, surge um discurso do género “bom, mas em certas situações eu também era capaz” – e essas situações, por exemplo, nos jovens são essencialmente ciúmes e infidelidade, “ele/a é meu/minha”. É a grande situação que os mais novos apontam como legitimadora da violência. Depois também aparece muito a ideia de que “bom, se a pessoa agiu sem ser uma coisa pensada”; portanto muito a ideia de não haver planeamento…, de impulsividade. E a impulsividade desculpabiliza. Se depois o agressor pede desculpa – que é uma dinâmica que depois também observamos, o arrependimento, pedir desculpas, a lua-de-mel – há muita tendência para acreditar que “foi só uma vez, foi uma coisa que não teve assim tanta importância”, se a violência não foi muito grave, parece mais fácil desculpar uma bofetada ou um empurrão do que uma tareia. A verdade é que ambas são Violência. Embora curiosamente, quer em Portugal quer na Europa, os estudos mostrem que a mudança nas crenças tem muito pouco impacto ao nível da mudança nos comportamentos, e portanto, a ideia de que basta mudar crenças para mudar comportamentos é uma ideia por si só, complicada, acredito que mudar crenças é importante, até porque em primeira instância afeta a vivência que a vítima tem da violência. Por isso, é importante este trabalho nas escolas, para além dos inquéritos, estas ações com as turmas formando grupos de discussão onde aparecem estes temas, estas exceções. Se olharmos só para os inquéritos o panorama até nem é mau do ponto de vista das crenças, das atitudes sociais. O problema é a ideia da excecionalidade, do “Ok! a violência é errada mas… mas em certas situações é aceitável, legítima. É isto que é preocupante e tem de ser trabalhado.
RN- A violência no namoro acontece com muita frequência?
JM – É um fenómeno que vai ocorrendo e que é preciso que todos os agentes nas escolas, na família, em todos os contextos onde exista estejam atentos e a denunciem. Muitas vezes questões como o ciúme, o facto de passarem tempo com outros/as amigos/as, a pressão para iniciar a vida sexual, as traições ou quebras de confiança, o facto de quererem realizar atividades diferentes ou terem opiniões diferentes ou o desrespeito pelo espaço do outro, podem ser situações que podem desencadear conflitos entre os namorados e iniciar uma escalada de violência.
RN- O que deve fazer um(a) jovem quando é agredido pelo namorado(a)?
JM– Eu gostava de explicitar a agressão porque às vezes isso parece não ser claro. Quando um/a jovem tem medo do temperamento dele/a; Tem medo da sua reação quando não têm a mesma opinião; Quando ele/a ignora constantemente os teus sentimentos; Goza com as coisas que lhe dizes; Procura ridicularizar-te ou fazer sentir-te mal, em frente dos/as amigos/as; Se ele/a alguma vez ameaçou agredir-te; Alguma vez te bateu, te empurrou ou te atirou algum objeto; Alguma vez te forçou a ter relações sexuais; Se és obrigado/a a justificar tudo o que fazes; Se te sentes manipulado/a; Se sempre que queres sair tens que lhe pedir autorização; Se és obrigado/a a mostrar as mensagens que recebes no telemóvel; Se exerce sobre ti alguma forma de controlo, na roupa que vestes ou com os teus amigos, estás a sofrer de violência no namoro. Por isso, é importante pôr de imediato em prática algumas estratégias: Opta por locais públicos e movimentados para estares com o/a teu/tua namorado/a. Locais isolados podem colocar-te em risco; Escolhe atividades em que estejas com o/a teu/tua namorado/a na presença de outras pessoas (ex.: o teu grupo de amigos); Muda as rotinas (ex.: o teu percurso para a escola e da escola para casa) e procura estar na companhia de amigos ou colegas de turma; Quando saíres diz a alguém em que confies onde vais e a que horas regressas; Grava contactos telefónicos importantes no teu telemóvel, para poderes pedir ajuda facilmente caso precises; Se sentires que estás em perigo, procura imediatamente alguém ou um sítio mais seguro (ex.: um sítio onde estejam mais pessoas). Podes também ligar 112. O profissional que atender a tua chamada enviará para o local onde te encontrares os meios necessários para te proteger. Por fim, é importante que a relação violenta termine, por isso, tenta falar com alguém em quem confies sobre o que se está a passar: os teus pais, um/a amigo/a, um/a professor/a, o/a psicólogo/a da escola; Escolhe um local público ou um local onde estejam mais pessoas para o fazer; Podes levar contigo algum amigo/a ou outra pessoa em quem confies que se mantenha por perto; Não confrontes o/a teu/tua namorado/a, nem reajas com violência; É importante estares preparado/a para eventuais reações negativas, impulsivas e agressivas. Se acontecerem, não respondas com violência e afasta-te do local onde te encontras; Prepara-te para a possibilidade de o/a teu/tua namorado/a te contactar para pedir desculpas ou tentar uma reconciliação. Se isso acontecer, não respondas, nem recues na decisão que tomaste.
0 Comentários