A nossa primeira expressão de pensamento foi amorosa, foi para aquela menina que se chamava Lili e que vestia de organdi e que todos nós amámos como nunca mais o fizemos na vida, um amor que significava carinho e admiração, um amor que nada queria, de tão serôdio que era, um amor que nos ocupava todas as horas do dia, ela era a nossa namorada, que ternura, que grande amor, ela de trança com laços e nós de calções a bater no joelho. Hoje olhamos o ridículo e choca-nos o despropósito, mas se Deus no-lo concedeu é porque qualquer coisa de divino ele tinha e, quem sabe se o divinizou com um sorriso de ternura.
Todos nós tivemos na vida uma Lili, mesmo que não vestisse de organdi ou não se chamasse mesmo Lili, mas todas elas eram iguais nos olhares que já eram de mulher a quererem ser picantes, mas plenas de ingenuidade, incapazes de escrever a palavra amor porque a pergunta que lhes abrasava o coração era saber sempre se «gostas mesmo de mim?».
Aquela pergunta era sempre feita de dúvida ou apenas para que no próximo bilhetinho pudessem ver escrito com letra de «homem», «sim, eu gosto muito de ti». Era apenas esta confirmação que a faria sonhar nessa noite. Mas tinham razão quando omitiam a palavra amor. O amor pede sempre muito mais, pede posse, pede direitos, pede o domínio das pessoas, eles já o distinguiam nos adultos que os rodeavam, aquele amor era diferente das paixões que os adultos exibiam para as suas amadas. O seu amor era muito superior porque nem sequer poderia ser do domínio deles. Descansa hoje nos seus diários secretos, junto das suas bonecas de trapos onde, na sua cama, à noite, lhe confiavam os seus segredos ou choravam as suas dores de meninas felizes ou infelizes pelos pais que tiveram.
Tinha de escrever um dia sobre isto, alivia repartir com aqueles que me lêem, para assim ser uma necessidade conjugada. As dores como as coisas em que o espírito intervém, não são factores só do nosso domínio, há que compartilhá-los com todos aqueles que nos compreendam, eles são do domínio do espírito. Há muito tempo que não são só nossos, são universais.
Vamos deixar dormir a nossa Lili, ela é o espólio mais distante que acordou o carinho no nosso coração infantil. Vamos apenas recordar a menina que um dia, num jardim, junto a um lago que tinha peixes vermelhos nos disse apenas: «o menino quer brincar comigo?».
Quem quiser contatar o cronista : valetorno@gmail.com
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