a corrida contra a insónia foi o tema de “Noite Branca”“Noite Branca” em AlcobaçaDavid Mariano Já todos passámos por isto alguma vez na vida: uma noite de insónia, o corpo à bulha com a ausência de sono entre os lençóis, o ruído maquinal dos ponteiros do relógio no silêncio ensurdecedor da noite. Ainda pensamos que resultaria imaginar carneirinhos a pular a cerca, dar um pulo à cozinha para emborcar copos de água, rezar por um comprimido para dormir perdido na gaveta da mesa de cabeceira – e claro que nada disto valeu a pena. Na noite de 20 de Outubro não foi muito diferente em cima do palco do Cine-Teatro de Alcobaça: não havia carneirinhos para contar, mas havia seis indivíduos enfiados dentro de pijamas brancos (faltou pouco para os carneirinhos) a evidenciar toda a natureza destes sintomas.
Os coreógrafos canadianos Sylvie Bouchard e David Danzon devem ter passado por muitas noites destas até chegarem a “Noite Branca”, espectáculo multidisciplinar que combina dança contemporânea, teatro físico, comédia, movimento e surrealismo num dispositivo cheio de humor e acção, lançado nessa fronteira humana da mente a que chamamos “estado de vigília”. Trata-se de um projecto peculiar, versátil e dinâmico – ou não fosse a representação conjunta destas seis personagens em cena (eles chamam-lhes, e bem, seis insones) uma deambulação complexa pelo território dos sonhos e por um imaginário (já Freud o apontara) de associação livre de ideias. Insisitimos: Sylvie Bouchard e David Danzon só podem ter passado por muitas noites destas antes de chegarem aqui, e primeiro do que isso fundaram a CORPUS em 1997, companhia responsável por este trabalho, que tem sido reconhecida pela veia de humor preciso e onírico que apresenta nas suas produções ou pela forma como tem vindo a atingir públicos abrangentes e diversificados. Percebemo-lo em “Noite Branca” e percebemos também porquê: a mímica, o slapstick, o burlesco, a ironia e as várias referências pop ajudam ao reconhecimento de um universo comum de vivências no seio das diversas representações (os vários “actos”, digamos) que ocorrem durante a actuação desta peça. Desde o início, o palco transforma-se num espaço vivo: paredes negras que se deslocam e oferecem a ilusão de um mundo mutável, cruzado por visões nocturnas e situações caricatas, histórias de amor e de sonhos, homens grávidos ou corridas de atletismo, sapateado e discotecas, portas que abrem e fecham, aparecem e desaparecem. Estamos naturalmente no terreno do subconsciente, com todas as particularidades bizarras e ilógicas que o atravessam (e mais rico e hipnótico o tornam junto do espectador). Depois de uma noite destas, não saberemos mais o que é melhor ou pior: se dormir ou ficar acordado. Talvez ambas as coisas. Afinal sai-se dali com uma melhor noção do que é sonhar acordado. E a olhar para as insónias sem a angústia ou a neura de antes; a imaginar que tudo é possível, desde cantar ou fazer o pino, rir e fantasiar, correr ou dançar. Justamente dançar, não há-de ser mais ridículo que contar carneirinhos a pular a cerca e sabemos como a insónia voltará a passar por nós alguma vez na vida.
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