Eu pescador me confessoArmando LopesColunistaDefinitivamente, quero passar a ser um sem-abrigo, um indigente, um pobre coitado sem eira nem beira, marginalizado pela sociedade. Cigano ou africano, tanto faz, desde que isso me dê direito a receber, todos os meses, o rendimento mínimo de reinserção. Sem ter de fazer o que quer que seja para ganhar uns bons “cobres”, isentos de impostos. Com o simples pretexto da minha condição de marginalizado social ou, até mesmo, imperativos étnicos determinados pela raça, cultura, nacionalidade ou outra coisa qualquer. Não importa. Tudo será válido, tudo será permitido e aceite em função desses pressupostos, desses estigmas que o destino me tenha gravado ou venha a gravar.
Definitivamente, recuso continuar a ser castigado pelo Governo, obsessivamente, pelo meu trabalho, pela minha dedicação, pela minha exclusividade, pelo direito à minha pensão de reforma – antecipada ou não –, por tudo aquilo que produzo para os outros, para a sociedade e para o país. Como se fosse um criminoso, um vadio ou um inútil. Porque, depois destes anos todos que levo de existência, cheguei à conclusão de que não vale a pena o esforço nem este sentimento ingénuo de cumprimento do dever. Se esse esforço não conseguir despertar, no Governo, um direito legítimo ao reconhecimento. Bem melhor será não fazer nada e, no entanto, ter direito a tudo e a estar rodeado de todas as comodidades e regalias da vida moderna.Por isso estou a pensar muito seriamente em candidatar-me a tudo o que é subsídio, ajuda ou comparticipação. Desde que não me traga obrigações e só me dê direitos. Pelo que tenciono, brevemente, montar uma tenda de campismo em frente da Câmara Municipal. E não vou sair de lá até que o senhor presidente me atribua uma habitação social (de preferência com vistas para o mar), com renda baixa e com direito a água, luz e gás. Coisas que eu não irei pagar, porque isso seria uma violação dos mais elementares direitos de excluído. Ao mesmo tempo, vou exigir que a Segurança Social me atribua um rendimento fixo que me assegure a sobrevivência e me permita reintegrar esta sociedade que me marginalizou. Objectivo que, obviamente, nunca mais alcançarei por falta de condições físicas, morais e psicológicas para desenvolver essa iniciativa.Finalmente, já decidi adquirir uma espingarda de pressão, para assim poder ocupar os meus momentos de ócio. Com ela poderei dedicar-me à caça das rolas, das gaivotas, dos cães e gatos vadios ou abandonados, que proliferam por aí e conspurcam com os seus excrementos tudo quanto é sítio. Bem como acabar de vez com tudo o que me chateia, desagrada e incomoda. Definitivamente…
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