bailarinos em exibição“Teologia da Queda” desce a AlcobaçaDavid MarianoNa ponta de um fio de luz que cai do tecto (embora no bailado como no teatro o que é preciso é imaginarmos o que lá não está: o céu) um dedo de uma mão, na ponta de um braço que é ainda a ponta de um corpo por nascer, ergue-se, lentamente, na direcção do público. O corpo é o de uma mulher e há pedras em volta que ela pega, deixa cair, afasta, aproxima de si, pega outra vez e volta a deixar a cair com estrondo. Ao fundo e a toda a largura do palco, um largo quadrado branco que do princípio ao fim transborda o pano de cores (não muitas: o vermelho, o azul, o amarelo, um espaço de sombras aqui e ali, vultos e perfis de bailarinos que a atravessam). A meio, um tapete de penas (muito branco também), e num dos lados, uma série de rosas vermelhas amontoadas.
Já falámos em bailado, já falámos em bailarinos. Só nos falta dizer quem são: o Ballet Contemporâneo do Norte (sob a direcção artística de Elisa Worm), que no dia 8 de Setembro, sábado à noite (o dia em que o poste e as costas de Ricardo traíram a Selecção contra os polacos), desceram ao Cine-Teatro de Alcobaça para apresentarem a sua “Teologia da Queda”. Desceram eles e as cinco personagens que trouxeram consigo: Cassandra que se ergueu das pedras (ou das pedras saiu), os Gémeos (par que readapta o mito de Adão e Eva), uma Criança (que arrasta um boneco de peluche) e um Cão (que é apenas um homem só e incomunicável). E se desde o início, sentimos a música crescer, a partir de uns sons estranhos e longínquos, em direcção às melodias crescentes e progressivas dos islandeses Sigur Rós, desde o início, percebemos que cair ou ascender é para o homem o mesmo que ser bom ou mau, ser anjo ou demónio.No bailado (não como no teatro), isto não se diz nem se ouve em lado algum; dança-se e expressa-se em gestos estranhos ou piruetas vistosas (e o Ballet Contemporâneo do Norte mostrou um pouco das duas coisas). Entre a coreografia clássica e a arte performativa, “Teologia da Queda” revisitou os temas da graça e desgraça nos homens com toda a carga espiritual e psicológica que lhe possamos associar (a concepção, direcção e composição coreográfica são da autoria de Luís Carolino). Não é por acaso que as pedras lá estão (a evidenciar a gravidade do ser humano) ou as rosas vermelhas expõem caules feitos de facas que se espetam no chão como uma jaula ao longo de toda a peça (a gravidade novamente sublinhando as feridas do desejo carnal).Mas este bailado, em cena e digressão desde o dia 3 de Abril de 2003, não esquece a inocência, a infância, a solidão, a fantasia ou o sonho; reivindica-os para o interior do seu universo artístico, refundando mitos universais nele recriados: a metamorfose, a mudança, o crescimento. Processos de transformação e aprendizagem, portanto, que definem toda a conduta humana ao longo da existência e da vida. Com uma dúvida permanente: onde está o livre arbítrio no meio de tudo isto? Onde e quando é possível decidir o nosso destino? Não há resposta – e o mais provável é que nunca haja. No mundo, caminha-se sempre descalço com essa consciência (e quem cai, resta-lhe levantar-se).Deve ser por isso que, na ponta de um fio luz que cai do tecto, uma mulher bate nas mãos as pontas de um par de sapatos encarnados descalços (e agora não é preciso imaginarmos o que lá está: a ascensão). A luz apaga-se e o que começou nas mãos de uma mulher, terminou nesse calçado vazio (mais ou menos na altura em que os portugueses deixavam um polaco atirar um remate do meio da rua). Na subida ou na queda, afinal, quem é que nos segura?
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