Paula Lobo Antunes (à esquerda) com as veteranas do teatro português Manuela Maria e Lurdes NorbertoTeatro no dia mundial da terceira idadeDavid Mariano Em cima da mesa há um puzzle que é preciso completar e no quarto estão duas camas e duas mulheres a juntar os fragmentos da vida como se as peças que faltassem fossem as mesmas. Vivem num lar da terceira idade e uma delas sonha com a viagem ao lado oposto do mundo – a Nova Zelândia -, enquanto a outra se veste e aperalta no dia em que o filho a vem sempre visitar (o dia em que sai para o banco do jardim a olhar as árvores e espera sozinha o que há anos nunca acontece). A primeira chama-se Fernanda (Lourdes Norberto) e quando não há ninguém por perto corre para o armário a procurar a companhia de um gole da garrafa de anis ou sacando do maço escondido no bolso do casaco um cigarro ansiado. A segunda é Leonor (Manuela Maria) que vê mal por causa das cataratas na vista e baralha sempre o sítio onde estão as coisas, apesar de ter olho e faro para os vícios da colega que tanto recrimina.
Começa assim “Felizmente não é Natal”, a peça de Carles Alberola encenada por Celso Cleto que comemorou no passado sábado, 27 de Outubro, no palco do Cine-Teatro de Alcobaça, o dia mundial da terceira idade (com duas representações: uma à tarde e a última à noite). Uma comédia dramática com duas veteranas actrizes do teatro português (em grande forma e em grande estilo), bem acompanhadas pela aspirante Paula Lobo Antunes (todos a conhecemos da novela “Deixa-me amar” transmitida na TVI) e pelo reconhecido Álvaro Faria (no papel de Alberto, o filho ausente que um dia faz a surpresa de regressar e reclamar o cachimbo da paz). Com humor e drama, já o dissemos, estas duas senhoras constroem aqui uma história divertida e sensível sobre a relação entre pais e filhos, a velhice e a juventude, o universo dos desejos e a cruel evidência da realidade. Não houve idades em questão – e a assistência repleta (com filhos a acompanhar os pais e vice-versa) chegou bem para provar a sintonia do público com o tema. Salomé (a jovem enfermeira interpretada por Paula Lobo Antunes) estava lá um pouco para fazer a fronteira, para equilibrar as contas, digamos, dos anos (e não só), mas também da ingenuidade e da tolice que nestas coisas, como a lei da gravidade, buscam refúgio e conselho junto dos mais sabidos e experientes. Uma gravidez inesperada (e adúltera ainda por mais), uma fragilidade medida através dos instintos sensuais da mocidade (os tais luxos que apenas os jovens se podem dar), a vertigem do crescimento somado ao desespero de tomar decisões. “Decisão” será o termo certo para definir a existência destas personagens pois em qualquer idade (seja na menopausa ou no vigor da mocidade) o duro quotidiano obriga-os a compromissos (compromissos que naquela plateia todos viram ou virão um dia). No fundo, juntar as peças do destino como Fernanda e Leonor juntam as peças do puzzle em cima da mesa, para ter uma ideia da ordem que custa dar à vida, para encontrarem uma paisagem melhor ao que resta do seu tempo. “Felizmente não é Natal” acaba da melhor maneira: na imagem de um carnaval de Veneza que nunca vemos, na imagem da comédia da vida. E duas mulheres que dançam.
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